Revoltas camponesas na Idade Média. 1358: a violência da Jacquerie na visão de Jean Froissart .
Em 1358, o reino da França foi palco de uma violenta guerra social entre as ordens, a Jacquerie, uma sublevação camponesa que, apesar de ter durado somente um mês, foi de uma incrível brutalidade, com igual resposta por parte dos nobres — a sociedade de ordens baseava-se num princípio de desigualdade, próprio da estrutura do cosmo. Implicava uma hierarquia, que, por sua vez, estruturava-se conforme a doutrina do corpo místico, adaptado à realeza (o rei, a cabeça, e as ordens, os membros).
O Estado era pensado como um organismo vivo. Não era a riqueza que conferia o escalão social e a dignidade e sim a posse de uma dignidade, que determinava a seu detentor as fontes de rendimentos, o poder sobre outros homens. Ela era obtida de diversas maneiras (por exemplo, por hereditariedade nobiliárquica ou por um determinado serviço prestado ao rei). Em suma, era uma sociedade de símbolos (trajes ou adornos especiais) e de privilégios.
O Grande Terror da Jacquerie (e sua repressão) exprimiu com intenso vigor o estado de tensão latente entre as ordens naquela metade do século XIV — as principais fontes para a Jacquerie são:Chronique des règnes de Jean II et de Charles V , Chronique de Jean de Bel e as Crônicas de Jean Froissart (1988).
Este artigo trata da Jacquerie na visão do cronista Jean Froissart (c. 1337-1410), um momento raro em que a voz do camponês se fez presente na documentação medieval. De fato, o problema da natureza das fontes medievais, seu caráter claramente omisso em relação a este grupo social, inibe uma análise mais profunda sobre os sentimentos dos camponeses em relação a seus senhores.
Como o objetivo deste artigo é a Jacquerie, não tratarei da evolução e imbricamento das condições sociais da massa camponesa (os servos — servi, o escravo do século IX, o colono e vilão dos séculos XI e XII). Tampouco comentarei as especificidades dos casos francês e alemão . Trabalharei, nas palavras de Marc Bloch, com a “oposição primordial” da sociedade medieval (e adotada mais tarde por Georges Duby): senhores e camponeses.
Os estudos arqueológicos não fornecem dados significativos dos modos de pensar e sentir daquele estrato social, o maior de todos, a base material que alicerçou as sociedades medievais durante toda a sua existência — uma projeção bastante cautelosa afirma que no século XIII eles seriam cerca de 69% da população européia . Para Jacques Le Goff, eles seriam 90% da população européia .
Sabemos com relativa segurança as formas de trabalho na terra (DUBY: 1987-1988), as fomes, os direitos dos senhores , os deveres dos camponeses (FOURQUIN, 1987: 166-175), as persistências pagãs — ver, por exemplo, São Cesário de Arles (470-543) em seu “Sermão para uma paróquia rural” (LAULAND, 1998: 42-48). Podemos até mesmo reconstituir a estrutura de uma casa camponesa , sua alimentação, mas sobre a natureza dos sentimentos do camponês em relação à sua condição servil, temos pouca informação. Esta dificuldade deve ser ressaltada: os silêncios da documentação. É o historiador catando as migalhas documentais à procura de informações sobre seu tema.
No entanto, esta omissão das fontes não deve nos enganar, pois à toda ação segue-se uma reação. Ser explorado provoca resistências (por vezes passivas, silenciosas), tumultos, deserções, fugas para as florestas — especialmente a partir do século XII , violências esporádicas — por exemplo, “...a surda guerrilha dos roubos nas terras do senhor (...) do incêndio das suas colheitas.” .
Violências também fortuitas que, sob certas circunstâncias conjunturais, poderiam assumir a forma de uma rebelião aberta e desafiadora ao status quo vigente, como foi o caso da Jacquerie.
Naturalmente, além do problema das fontes, as circunstâncias históricas e culturais das relações sociais na sociedade medieval serviram de atenuante para a maior parte dos historiadores que tentaram explicar as revoltas camponesas do século XIV. Portanto, a visão que defendo aqui — a que a Jacquerie foi uma guerra entre as ordens (e não classes) sociais — de maneira nenhuma possui consenso, embora a crônica de Froissart passe exatamente esta impressão, como veremos adiante. Para a impossibilidade da adoção do conceito de classe para este período, ver Fourquin ; para o uso deste conceito na Idade Média, ver Jacques Le Goff .
Feitas estas considerações preliminares, antes de tratar do depoimento de Jean Froissart sobre a Jacquerie, farei uma breve digressão sobre algumas passagens de documentos medievais onde o sentimento da condição de servo se fez presente. Este será o recorte das fontes: qual a sensação de viver nas camadas inferiores.
Em outras palavras, onde e de que forma surge no documento a consciência de pertencer a uma ordem subalterna e explorada — isto apesar de todos os direitos que eles também possuíam — e a estreiteza do contato social que existia entre senhor e servo: “Na realidade, nunca os contatos foram mais estreitos entre as classes ditas dirigentes — neste caso os nobres — e o povo: contatos que a noção de laço pessoal facilita, essencial para a sociedade medieval — que as cerimônias locais, festas religiosas e outras multiplicam, e nas quais o senhor encontra o rendeiro, aprende a conhecê-lo e partilha a sua existência muito mais estreitamente que nos nossos dias os pequenos burgueses partilham a dos seus criados” .
Esta consciência de pertença a um grupo aparece em lampejos cronísticos, fontes que são sempre escritas por gente que não pertencia a esta ordem — mais um problema da natureza documental — mas, que mesmo assim, nos mostra que a sociedade medieval não era tão harmoniosa como os textos a princípio nos fazem crer. Jacques Le Goff já assinalou bem o motivo pelo qual as fontes medievais silenciam os antagonismos sociais: o quase monopólio literário dos clérigos até o século XIII . Por sua vez, Georges Duby destaca o motivo comum das revoltas camponesas medievais: a resistência aos impostos . Para a primeira fase das revoltas, selecionei duas passagens de fontes onde a consciência de pertença a um grupo oprimido está presente: uma revolta na Normandia em 996 brutalmente sufocada pelos barões e um diálogo fictício entre um amo e seu escravo, na Inglaterra anglo-saxã do século X.
Em 996 estourou uma revolta camponesa na Normandia. Robert Wace , um anglo-normando cônego de Bayeux, funcionário de Henrique Plantageneta, escreveu uma crônica literária (incompleta) dos duques da Normandia intitulada Roman de Rou , mais de cento e cinquenta anos depois do acontecido, e, portanto, baseando-se principalmente em fontes latinas (especialmente a narrativa escrita cem anos antes pelo monge Guilherme de Jumièges).
Os especialistas consideram os colóquios escritos por Aelfric fruto da observação direta . Naturalmente , este diálogo é absolutamente fictício. No entanto, exprime com bastante clareza o sentimento do medo: eles trabalhavam na terra por medo de seus senhores. Para ser mais preciso: os que sabiam ler e escrever pensavam que os camponeses (e escravos, como no caso anglo-saxão) trabalhavam sob coação
Lado-a-lado, estas duas passagens que selecionei demonstram um nível de insatisfação latente por parte do campesinato, um sentimento que provavelmente só fez crescer até chegar ao seu limite, no século XIV. “Os camponeses estão sempre zangados — diz um poema goliárdico da Boémia — e o seu coração nunca está satisfeito.” .
Pois após o ano mil, a decadência das instituições públicas e o gradativo aumento das exações — apesar das cartas de franquia — cartas outorgadas pelo senhor aos habitantes de vários senhorios que codificavam os costumes locais e protegiam os servos de interpretações abusivas do senhor e seus funcionários, “...precisando as condições e os limites em que o senhor, de futuro, poderá exigir tributos e serviços” —, forçou o campesinato a uma uniformização. Para baixo. Especialmente a partir do século XIII, tempo que viu alargar a distância entre ricos e pobres no mundo medieval .
Isto fica claro quando se analisa a evolução dos termos aplicados ao camponês: pouco a pouco, um sentido pejorativo tomou conta do universo semântico que definia o homem da terra , especialmente as palavras rusticus — camponês, mas desde o século VI como sinônimo de ignorante, iletrado, em suma, a massa desprovida de cultura — e villani(vilão) — originalmente apenas o residente da villa , mas no século XIV já com o sentido de fealdade moral .
Os rustici também eram retratados pelos letrados com profundo desprezo, ridicularizados na literatura e na arte, nas chansons de geste, nos contos satíricos e nos poemas goliárdicos — os goliardos (ouvagants) eram clérigos marginais e urbanos que escreviam poesias criticando asperamente a sociedade de sua época
Por exemplo, um conto dizia que a alma do vilão após a morte seria recusada no Inferno, pois os diabos se recusariam a levá-la devido ao seu mau cheiro — apenas se possuísse uma habilidade excepcional alcançaria o paraíso (“É esse o tema do fabulário intitulado Du vilain qui gagna le paradis par plaid — isto é, o vilão que ganhou o paraíso pleiteando.”) .
Um poema goliárdico (A Declinação do camponês) mostrava o vilão como um gatuno (furem), ladrão (latro), maldito (maledicti), miserável (tristium), mentiroso (mendacibus) e infiel (infidelibus) .
Era também comum o camponês ser descrito como um negro. Numa chanson de geste de Garin le Lorrain, Rigaud, filho do vilão Hervis é descrito da seguinte forma:
Era um rapagão de membros fortes, largo de braços, de rins e de ombros, com os olhos afastados um do outro de uma mão-travessa; não se poderia encontrar em sessenta países um rosto mais rude e mais desagradável. Tinha os cabelos eriçados e as faces negras e curtidas; havia seis meses que não lavava a cara e a única água que lha molhara tinha sido a chuva do céu”. E na floresta onde Aucassin vai a cavalo, a aparição de um jovem camponês: “Tinha uma enorme cabeça. mais negra que um tição, e tinha mais de uma mão-travessa entre os olhos, e tinha enormes bochechas e um grande nariz achatado, com as narinas largas, e lábios grossos, mais vermelhos que a carne grelhada, e grandes dentes, amarelos e feios...
O Estado era pensado como um organismo vivo. Não era a riqueza que conferia o escalão social e a dignidade e sim a posse de uma dignidade, que determinava a seu detentor as fontes de rendimentos, o poder sobre outros homens. Ela era obtida de diversas maneiras (por exemplo, por hereditariedade nobiliárquica ou por um determinado serviço prestado ao rei). Em suma, era uma sociedade de símbolos (trajes ou adornos especiais) e de privilégios.
O Grande Terror da Jacquerie (e sua repressão) exprimiu com intenso vigor o estado de tensão latente entre as ordens naquela metade do século XIV — as principais fontes para a Jacquerie são:Chronique des règnes de Jean II et de Charles V , Chronique de Jean de Bel e as Crônicas de Jean Froissart (1988).
Este artigo trata da Jacquerie na visão do cronista Jean Froissart (c. 1337-1410), um momento raro em que a voz do camponês se fez presente na documentação medieval. De fato, o problema da natureza das fontes medievais, seu caráter claramente omisso em relação a este grupo social, inibe uma análise mais profunda sobre os sentimentos dos camponeses em relação a seus senhores.
Como o objetivo deste artigo é a Jacquerie, não tratarei da evolução e imbricamento das condições sociais da massa camponesa (os servos — servi, o escravo do século IX, o colono e vilão dos séculos XI e XII). Tampouco comentarei as especificidades dos casos francês e alemão . Trabalharei, nas palavras de Marc Bloch, com a “oposição primordial” da sociedade medieval (e adotada mais tarde por Georges Duby): senhores e camponeses.
Os estudos arqueológicos não fornecem dados significativos dos modos de pensar e sentir daquele estrato social, o maior de todos, a base material que alicerçou as sociedades medievais durante toda a sua existência — uma projeção bastante cautelosa afirma que no século XIII eles seriam cerca de 69% da população européia . Para Jacques Le Goff, eles seriam 90% da população européia .
Sabemos com relativa segurança as formas de trabalho na terra (DUBY: 1987-1988), as fomes, os direitos dos senhores , os deveres dos camponeses (FOURQUIN, 1987: 166-175), as persistências pagãs — ver, por exemplo, São Cesário de Arles (470-543) em seu “Sermão para uma paróquia rural” (LAULAND, 1998: 42-48). Podemos até mesmo reconstituir a estrutura de uma casa camponesa , sua alimentação, mas sobre a natureza dos sentimentos do camponês em relação à sua condição servil, temos pouca informação. Esta dificuldade deve ser ressaltada: os silêncios da documentação. É o historiador catando as migalhas documentais à procura de informações sobre seu tema.
No entanto, esta omissão das fontes não deve nos enganar, pois à toda ação segue-se uma reação. Ser explorado provoca resistências (por vezes passivas, silenciosas), tumultos, deserções, fugas para as florestas — especialmente a partir do século XII , violências esporádicas — por exemplo, “...a surda guerrilha dos roubos nas terras do senhor (...) do incêndio das suas colheitas.” .
Violências também fortuitas que, sob certas circunstâncias conjunturais, poderiam assumir a forma de uma rebelião aberta e desafiadora ao status quo vigente, como foi o caso da Jacquerie.
Naturalmente, além do problema das fontes, as circunstâncias históricas e culturais das relações sociais na sociedade medieval serviram de atenuante para a maior parte dos historiadores que tentaram explicar as revoltas camponesas do século XIV. Portanto, a visão que defendo aqui — a que a Jacquerie foi uma guerra entre as ordens (e não classes) sociais — de maneira nenhuma possui consenso, embora a crônica de Froissart passe exatamente esta impressão, como veremos adiante. Para a impossibilidade da adoção do conceito de classe para este período, ver Fourquin ; para o uso deste conceito na Idade Média, ver Jacques Le Goff .
Feitas estas considerações preliminares, antes de tratar do depoimento de Jean Froissart sobre a Jacquerie, farei uma breve digressão sobre algumas passagens de documentos medievais onde o sentimento da condição de servo se fez presente. Este será o recorte das fontes: qual a sensação de viver nas camadas inferiores.
Em outras palavras, onde e de que forma surge no documento a consciência de pertencer a uma ordem subalterna e explorada — isto apesar de todos os direitos que eles também possuíam — e a estreiteza do contato social que existia entre senhor e servo: “Na realidade, nunca os contatos foram mais estreitos entre as classes ditas dirigentes — neste caso os nobres — e o povo: contatos que a noção de laço pessoal facilita, essencial para a sociedade medieval — que as cerimônias locais, festas religiosas e outras multiplicam, e nas quais o senhor encontra o rendeiro, aprende a conhecê-lo e partilha a sua existência muito mais estreitamente que nos nossos dias os pequenos burgueses partilham a dos seus criados” .
Esta consciência de pertença a um grupo aparece em lampejos cronísticos, fontes que são sempre escritas por gente que não pertencia a esta ordem — mais um problema da natureza documental — mas, que mesmo assim, nos mostra que a sociedade medieval não era tão harmoniosa como os textos a princípio nos fazem crer. Jacques Le Goff já assinalou bem o motivo pelo qual as fontes medievais silenciam os antagonismos sociais: o quase monopólio literário dos clérigos até o século XIII . Por sua vez, Georges Duby destaca o motivo comum das revoltas camponesas medievais: a resistência aos impostos . Para a primeira fase das revoltas, selecionei duas passagens de fontes onde a consciência de pertença a um grupo oprimido está presente: uma revolta na Normandia em 996 brutalmente sufocada pelos barões e um diálogo fictício entre um amo e seu escravo, na Inglaterra anglo-saxã do século X.
Em 996 estourou uma revolta camponesa na Normandia. Robert Wace , um anglo-normando cônego de Bayeux, funcionário de Henrique Plantageneta, escreveu uma crônica literária (incompleta) dos duques da Normandia intitulada Roman de Rou , mais de cento e cinquenta anos depois do acontecido, e, portanto, baseando-se principalmente em fontes latinas (especialmente a narrativa escrita cem anos antes pelo monge Guilherme de Jumièges).
Os especialistas consideram os colóquios escritos por Aelfric fruto da observação direta . Naturalmente , este diálogo é absolutamente fictício. No entanto, exprime com bastante clareza o sentimento do medo: eles trabalhavam na terra por medo de seus senhores. Para ser mais preciso: os que sabiam ler e escrever pensavam que os camponeses (e escravos, como no caso anglo-saxão) trabalhavam sob coação
Lado-a-lado, estas duas passagens que selecionei demonstram um nível de insatisfação latente por parte do campesinato, um sentimento que provavelmente só fez crescer até chegar ao seu limite, no século XIV. “Os camponeses estão sempre zangados — diz um poema goliárdico da Boémia — e o seu coração nunca está satisfeito.” .
Pois após o ano mil, a decadência das instituições públicas e o gradativo aumento das exações — apesar das cartas de franquia — cartas outorgadas pelo senhor aos habitantes de vários senhorios que codificavam os costumes locais e protegiam os servos de interpretações abusivas do senhor e seus funcionários, “...precisando as condições e os limites em que o senhor, de futuro, poderá exigir tributos e serviços” —, forçou o campesinato a uma uniformização. Para baixo. Especialmente a partir do século XIII, tempo que viu alargar a distância entre ricos e pobres no mundo medieval .
Isto fica claro quando se analisa a evolução dos termos aplicados ao camponês: pouco a pouco, um sentido pejorativo tomou conta do universo semântico que definia o homem da terra , especialmente as palavras rusticus — camponês, mas desde o século VI como sinônimo de ignorante, iletrado, em suma, a massa desprovida de cultura — e villani(vilão) — originalmente apenas o residente da villa , mas no século XIV já com o sentido de fealdade moral .
Os rustici também eram retratados pelos letrados com profundo desprezo, ridicularizados na literatura e na arte, nas chansons de geste, nos contos satíricos e nos poemas goliárdicos — os goliardos (ouvagants) eram clérigos marginais e urbanos que escreviam poesias criticando asperamente a sociedade de sua época
Por exemplo, um conto dizia que a alma do vilão após a morte seria recusada no Inferno, pois os diabos se recusariam a levá-la devido ao seu mau cheiro — apenas se possuísse uma habilidade excepcional alcançaria o paraíso (“É esse o tema do fabulário intitulado Du vilain qui gagna le paradis par plaid — isto é, o vilão que ganhou o paraíso pleiteando.”) .
Um poema goliárdico (A Declinação do camponês) mostrava o vilão como um gatuno (furem), ladrão (latro), maldito (maledicti), miserável (tristium), mentiroso (mendacibus) e infiel (infidelibus) .
Era também comum o camponês ser descrito como um negro. Numa chanson de geste de Garin le Lorrain, Rigaud, filho do vilão Hervis é descrito da seguinte forma:
Era um rapagão de membros fortes, largo de braços, de rins e de ombros, com os olhos afastados um do outro de uma mão-travessa; não se poderia encontrar em sessenta países um rosto mais rude e mais desagradável. Tinha os cabelos eriçados e as faces negras e curtidas; havia seis meses que não lavava a cara e a única água que lha molhara tinha sido a chuva do céu”. E na floresta onde Aucassin vai a cavalo, a aparição de um jovem camponês: “Tinha uma enorme cabeça. mais negra que um tição, e tinha mais de uma mão-travessa entre os olhos, e tinha enormes bochechas e um grande nariz achatado, com as narinas largas, e lábios grossos, mais vermelhos que a carne grelhada, e grandes dentes, amarelos e feios...
Foi nesse contexto histórico de gradativo e dissimulado confronto social que aconteceu a Jacquerie. Além disso, as derrotas francesas na Guerra dos Cem Anos, o cativeiro do rei João II (1350-1364) na Inglaterra após a derrota em Poitiers (1356), mas, sobretudo, a venalidade dos ministros do rei, abriram um espaço político para que o Terceiro Estado — convocado para pagar o resgate de João II — tentassem de alguma forma restabelecer o controle constitucional. Os primeiros Estados Gerais foram convocados em 1355 e 1358, portanto, no contexto pré-insurrecional (FOURQUIN, op. cit.: 221).
Poitiers mostrou ao povo que os cavaleiros eram incapazes de assumir a missão de proteger o rei, “só ela justificava sua arrogância, seus privilégios e o sistema fiscal senhorial” (DUBY, 1992: 264). O consenso foi então bruscamente rompido.
A sublevação camponesa de maio de 1358 foi precedida por um levante burguês parisiense, que teve como líder o preboste (prévot, cargo equivalente ao de prefeito) Etienne Marcel. O preboste administrava todas as funções municipais, e era auxiliado por 10 vice-prebostes e um conselho de 24 clérigos e leigos. Rico negociante de tecidos, Marcel era também o principal representante dos grupos mercantis da burguesia parisiense no Terceiro Estado (CAZELLES, 1965: 413) — composto então pelas corporações, especialmente de comerciantes, advogados e fornecedores de gêneros alimentícios à coroa
Poitiers mostrou ao povo que os cavaleiros eram incapazes de assumir a missão de proteger o rei, “só ela justificava sua arrogância, seus privilégios e o sistema fiscal senhorial” (DUBY, 1992: 264). O consenso foi então bruscamente rompido.
A sublevação camponesa de maio de 1358 foi precedida por um levante burguês parisiense, que teve como líder o preboste (prévot, cargo equivalente ao de prefeito) Etienne Marcel. O preboste administrava todas as funções municipais, e era auxiliado por 10 vice-prebostes e um conselho de 24 clérigos e leigos. Rico negociante de tecidos, Marcel era também o principal representante dos grupos mercantis da burguesia parisiense no Terceiro Estado (CAZELLES, 1965: 413) — composto então pelas corporações, especialmente de comerciantes, advogados e fornecedores de gêneros alimentícios à coroa
O pano de fundo do levante burguês foi a convocação dos Estados Gerais para a captação de dinheiro para a defesa do reino contra a Inglaterra (e o resgate do rei João II). Marcel comandava metade dos delegados (400), e exigiu o afastamento dos sete conselheiros reais (sabidamente corruptos) e o confisco de suas propriedades.
Além disso, que fosse formada uma comissão chamada “Conselho dos Vinte e Oito” (12 nobres, 12 burgueses e 4 clérigos) e a libertação de Carlos, o Mau, de Navarra .
O delfim Carlos fugiu de Paris, rejeitou as exigências e ordenou a dissolução dos Estados, que se recusaram. Marcel pressionou o delfim, com a ameaça de greves (das guildas e ofícios de Paris) e violência popular (armando o populacho). Sem recursos, Carlos voltou a Paris e reconvocou os Estados que, entre fevereiro e março de 1357 elaboraram, em francês, a chamada “Grande Ordenação”, sessenta e um artigos que expunham o ideal do bom governo monárquico. Além disso, seria formado um Conselho de Trinta e Seis (doze de cada Estado), para aconselhar a coroa . Carlos protelou e, mais uma vez, Marcel pressionou, levando as massas às ruas, que gritavam: “Às armas!”. Carlos assinou, mas conseguiu que a nobreza retirasse o apoio na reunião dos Estados Gerais.
Em agosto, Carlos restabeleceu os conselheiros afastados e informou a Marcel e ao Conselho dos Trinta e Seis que governaria sozinho. Os acontecimentos se precipitaram: após dois discursos em Paris — um de Carlos de Navarra (libertado para ser um aliado de Marcel), outro do delfim Carlos — e o assassinato de Perrin Marc, que, por sua vez havia matado o tesoureiro do delfim — Marcel marchou com cerca de três mil artesãos e comerciantes armados até o palácio real.
Chegando ao quarto do delfim, mataram dois marechais na frente de Carlos, nas palavras de Marcel, um ato que representava “a vontade do povo". Após este acontecimento, os nobres definitivamente colocaram-se ao lado da coroa.
Além disso, que fosse formada uma comissão chamada “Conselho dos Vinte e Oito” (12 nobres, 12 burgueses e 4 clérigos) e a libertação de Carlos, o Mau, de Navarra .
O delfim Carlos fugiu de Paris, rejeitou as exigências e ordenou a dissolução dos Estados, que se recusaram. Marcel pressionou o delfim, com a ameaça de greves (das guildas e ofícios de Paris) e violência popular (armando o populacho). Sem recursos, Carlos voltou a Paris e reconvocou os Estados que, entre fevereiro e março de 1357 elaboraram, em francês, a chamada “Grande Ordenação”, sessenta e um artigos que expunham o ideal do bom governo monárquico. Além disso, seria formado um Conselho de Trinta e Seis (doze de cada Estado), para aconselhar a coroa . Carlos protelou e, mais uma vez, Marcel pressionou, levando as massas às ruas, que gritavam: “Às armas!”. Carlos assinou, mas conseguiu que a nobreza retirasse o apoio na reunião dos Estados Gerais.
Em agosto, Carlos restabeleceu os conselheiros afastados e informou a Marcel e ao Conselho dos Trinta e Seis que governaria sozinho. Os acontecimentos se precipitaram: após dois discursos em Paris — um de Carlos de Navarra (libertado para ser um aliado de Marcel), outro do delfim Carlos — e o assassinato de Perrin Marc, que, por sua vez havia matado o tesoureiro do delfim — Marcel marchou com cerca de três mil artesãos e comerciantes armados até o palácio real.
Chegando ao quarto do delfim, mataram dois marechais na frente de Carlos, nas palavras de Marcel, um ato que representava “a vontade do povo". Após este acontecimento, os nobres definitivamente colocaram-se ao lado da coroa.